Estou muitíssimo sumida, mas vou tentar voltar a ter um ritmo de escrita por aqui, afinal isso me dava muita alegria e tesão até pouco tempo atrás. Agora o trabalho está dominando tudo e não tenho conseguido me organizar como antes, pois toda a energia está em revisar uma longa tradução, cuidar do filhote e abrir caminhos dentro da minha pesquisa de pós-doc. Contudo, uma notícia extraordinária que recebi no domingo passado me devolveu um pouco desse desejo de contar as novidades, falar do passado e quem sabe continuar com essas cartas “de viagem”. A notícia agora é oficial pois já saiu na imprensa galega: meu próximo livro (em processo de escrita) foi selecionado pela Residência Literária 1863, em A Coruña, na Galícia. É a primeira edição de uma residência literária para escritoras mães (ou pai, ou cuidadora primária) com apoio da secretaria de assuntos sociais da cidade. Fiquei imensamente feliz e honrada. O projeto do livro nasceu assim que saí da Islândia, ainda em trânsito passando pela Itália, a partir de um diálogo poético escrito forma de haicais (e depois em outras formas) com um amigo poeta islandês.
Esses poemas encontraram um terreno fértil no ensaio Amazônia Sensível do filósofo italiano Emanuele Coccia, publicado pela editora Cultura e Barbárie e foram tomando forma numa série mais organizada. O outro lado da medalha são poemas em que maternidade e natureza se fundem formando uma espécie de bestiário irônico (e um pouco aterrorizante), mas tudo isso pode ser lido na notícia oficial, vou deixar o link aqui. Foi uma surpresa linda receber a ligação da diretora da residência, a poeta Yolanda Castaño, pois já nos conhecíamos fazia anos, mas ela não sabia que eu havia mandado um projeto à residência e só ficou sabendo quando recebeu o resultado da seleção por parte do júri, que inclui a secretaria de Bem estar social de A Coruña. Enfim, uma bela reviravolta para esse fim de verão europeu, fim de inverno no hemisfério sul e a possibilidade de unir a minha pesquisa de pós-doutorado sobre representações da maternidade com um projeto de criação literária (tudo isso sem excluir a maternidade, não só objeto de estudo, mas concreta: meu filho).

Em 2017 estive na Galícia pela primeira vez num festival literário na cidade de Allariz e depois numa residência literária de poetas tradutores que tinham o português como língua em comum, naquela ocasião fui com meus poemas em italiano e juntos nos traduzimos uns aos outros usando o português como língua de comunicação. Poetas vindo de todos os cantos, Hu Xudong da China (imenso amigo meu que infelizmente faleceu em 2021 a quem dediquei a plaquete Pele do tempo editada pela Primata), Rita Dahl da Finlândia Tomica Bajsic da Croácia, Estevo Creus da Galícia e Antón García de Astúrias nos reunimos da ilha de São Simão nas Rías Baixas durante esse encontro Con barqueira e remador. Foram dias e noites inesquecíveis de muita escrita, isolamento num mundo tão diferente, pré-pandemia, para mim também pré-maternidade… muito mais analógico. Essa volta para Galícia agora como mãe e junto ao meu filho será uma grande aventura, assim como a volta para o Brasil também tem sido essa abertura para novos acontecimentos. Dessa viagem saíram duas prosas que estão no meu livro Errância e alguns poemas que depois foram incluídos no Inventário.
Vou deixar por aqui alguns trechos e fotos e para arrematar essa longa ausência, antes do texto galego, um pouco sobre o belíssimo Colóquio de Tradução que aconteceu na UFF em maio. Tinha a honra de fechar o Colóquio falando sobre o processo de tradução a quatro mãos dos poemas de Gerður Kristný, com meu companheiro de vida e poesia Luciano Dutra. O evento foi maravilhoso, bem organizado e muito enriquecedor. Agradecida demais aos organizadores Prof. Beethoven Alvarez e Profa. Carolina Paganine e ao prof. Emanuel Brito pelo convite. No final de junho estarei de novo na UFF ministrando encontros de tradução de poesia e falando sobre tradução e mercado editorial.
Boas leituras!
1. Acariciar a pele de um dinossauro
¿Hay violencia más triste que la palabra isla?María Negroni
Em novembro de 2019, durante meu primeiro inverno em Reykjavík, a capital da Islândia, comecei a traduzir o primeiro livro italiano de Jhumpa Lahiri. A autora, há alguns anos, decidiu escrever nesta outra língua, cujo amor e fascínio nutriu por pelo menos duas décadas antes de se arriscar a nela criar. A essa altura, sua criação acontece na segunda (na verdade terceira) língua, e passa por uma retrotradução para sua língua materna (ou segunda língua), o inglês. Sua língua materna é na verdade o bengali, herdada de sua mãe, mas que existe para a autora só como idioma de comunicação oral.
O pequeno livro se chama In altre parole (Em outras palavras). Infelizmente, minha tradução nunca encontrou seu público, pois, no meio tempo, houve um desinteresse em publicar uma narrativa tão específica sobre o processo da aquisição de uma nova língua, mesmo tratando-se de uma grande escritora cujo primeiro livro, Intérprete de males, rendeu-lhe muito cedo o prêmio Pulitzer. In altre parole é uma coleção de narrativas de gênero fronteiriço: algo entre o conto e o ensaio, entre o relato e a crônica. O último capítulo é, propriamente, um conto. Já o texto de abertura é tecido como um sonho. A narradora chega todos os dias até um lago cujas águas são claras perto da margem e turvas conforme se desloca em direção ao seu centro, onde há maior profundidade. Do outro lado, há uma casa onde ela deseja chegar, mas só lhe parece possível percorrer as margens do lago, uma travessia pelo perímetro e não pelo diâmetro. Contornando o lago, há sempre um sensação de segurança, o desprendimento e o risco da travessia por águas turvas é o que poderia conferir a emoção à travessia e Jhumpa Lahiri conclui:
Per conoscere una nuova lingua, per immergersi, si deve lasciare la sponda. Senza salvagente. Senza poter contare sulla terraferma.
[Para conhecer uma nova língua, para imergir-se nela, é preciso deixar as margens. Sem salva-vidas. Sem poder contar com o chão.]
Conforme traduzia Jhumpa Lahiri, me identificava com seu arrebatamento, não porque o sentisse em relação à Islândia ou à língua islandesa, mas, numa posição de idealização, cultivava a fé de que eu também iria me apaixonar perdidamente por essa língua nórdica tão antiga. Afinal, aprender línguas era a minha praia, e essa seria mais uma aventura linguística. Minha ilusão, meu desejo, estavam, no fundo, mais próximos à comédia shakespeariana Os dois cavalheiros de Verona, na qual a amizade entre Valentim e Proteu é rompida quando o segundo, movido pela inveja do desejo do seu camarada, trai o amigo apaixonando-se por Sílvia, a amada de Valentim. Como se estivesse presa, de forma inconsciente, no teatro da inveja ilustrado por Harold Bloom, no qual os personagens são movidos por desejos miméticos — desejam o que o outro deseja, não pelo objeto em si, mas pela valorização que o desejo do outro confere ao objeto — eu então me apaixonava cada vez mais pela língua islandesa de forma hipotética. A entrega de Jhumpa Lahiri tornava-se um esboço do meu futuro. Concluí a tradução do livro e joguei-me no meu segundo curso de língua islandesa. Do primeiro, levei o mais valioso ensinamento: aprender islandês, dizia minha professora Sirrý, é como acariciar a pele de um dinossauro.
2. A língua islandesa: uma cápsula do tempo
A língua islandesa ocupa uma posição especial entre os idiomas nórdicos, por ter uma das tradições linguísticas mais bem preservadas naqueles países. Assim como em geral, os italianos podem ler a Commedia de Dante, também os falantes do islandês moderno conseguem ler textos milenares com relativa facilidade — uma façanha que poucas outras comunidades linguísticas podem reivindicar. Uma das peculiaridades em relação às línguas escandinavas, que se modernizaram simplificando-se e paneuropeizando-se, é que o islandês se modernizou arcaizando-se, reduzindo no último século (que passou) as influências escandinavas. Se por um lado essa continuidade deriva do isolamento geográfico, por outro há um esforço consciente da nação em preservar o patrimônio linguístico através de políticas públicas como o ensino da língua para trabalhadore estrangeiros custeado pelos sindicatos ou o investimento na criação de um extenso banco de dados com dicionários em várias línguas (snara) assim como um acervo de gravações de pronúncia das palavras, o histórico etimológico e morfológico do seu vocabulário e um portal de declinações, Beygingarlýsing íslensks nútímamáls (BÍN).
O islandês pertence ao ramo norte-germânico da família linguística indoeuropeia e descende diretamente do nórdico antigo, a língua falada pelos colonizadores viajantes, ou seja, os vikings noruegueses que começaram a chegar à ilha no final do século IX. Enquanto outras línguas nórdicas como o dinamarquês, o norueguês e o sueco sofreram transformações significativas devido às influências continentais, o islandês se desenvolveu em relativo isolamento, mantendo grande parte da estrutura gramatical nórdica antiga originária, além do léxico. Assim, a língua islandesa conserva muitas características que desapareceram de suas línguas irmãs, incluindo um sistema complexo de casos declinativos, gênero gramatical e extensos padrões de conjugação verbal.
Essa preservação linguística foi ainda mais reforçada por políticas deliberadas de purismo linguístico que começaram no século XIX sob a égide da versão local do romantismo, numa época em que o país ainda era submetido ao domínio colonial dinamarquês. Em vez de adotar palavras emprestadas de outros idiomas, o islandês cria novos termos a partir de raízes nativas. Um exemplo é a palavra islandesa para “computador”: tölva — um neologismo que combina tölur, forma plural de tala (número, cifra) e völva (profetisa, sibila). Essa manutenção consciente da tradição linguística criou uma ponte temporal para o passado medieval.
Conforme me adentrava nesse universo percebi que uma língua como essa era de fato um parque de diversões para uma poeta. Por um lado, sofria imensamente minha inaptidão diante de tantas declinações (em especial os adjetivos em seus variados casos e declinações forte e fraca, totalizando 72 formas para cada adjetivo), mas também as vogais, que parecem que jamais caberão ao certo em minha boca. Por outro lado, abria-se uma fissura luminosa: começava a entender um grau de tridimensionalidade da língua que no fundo, para mim, só existia nos pronomes pessoais. Tudo tornava-se um exercício lúdico de criação morfológica, graças às palavras compostas, e isso abria um leque colorido de possibilidades na vertente das traduções.
Voltando ainda um pouco à tradição, as sagas dos islandeses (Íslendingasögur) representam um conjunto magistral de literatura medieval e fornecem informações cruciais sobre a cultura nórdica durante os séculos XIII e XIV. O que diferencia as sagas de outras literaturas medievais europeias é seu estilo narrativo distintivo — objetivo, repleto de nuances emotivas e psicológicas, nas quais elementos sobrenaturais são entrelaçados com a narrativa realista de disputas familiares e questões jurídicas. Segundo uma das teorias dominantes no estudo das sagas, essa tradição teria se desenvolvido a partir da narrativa oral e mantida por gerações antes de ser registrada em pergaminho. Essas narrativas foram escritas na língua vernácula, e não no latim erudito, como seria de se esperar naquela época, tornando-as assim acessíveis a um público mais amplo.
Os diálogos entre a tradição islandesa e a literatura América Latina, até hoje, ainda não são tão profícuos, e talvez a própria escassez de traduções seja um dos motivos desse afastamento. Contudo, não podemos esquecer que Jorge Luis Borges foi provavelmente o primeiro e por muito tempo um dos únicos escritores latinoamericanos a manifestar interesse e fascínio pelas sagas islandesas, incorporando elementos da tradição nórdica em sua obra poética, contística e ensaística. Décadas mais tarde, María Negroni, uma das autoras convidadas para a próxima edição da FLIP, retomou essa obsessão borgiana em seu primeiro livro, um livro de poemas em verso e prosa que dialoga com o imaginário islandês. Ida Vitale, por sua vez, escreveu o poema “Islândia 2000” sobre uma viagem real à ilha, poema ao qual respondi com minha própria “tranlusciferação mefistofélica” intitulada “Islândia 2019”.
ISLANDIA, 2000
Ceibos, ceibas, solamente una letra marca la clara diferencia. Rojos ceibos y verdes ceibas reinan, como saúcos, sauces y cipreses, en la dichosa incandescencia usual de un sur lleno de cantos y colores. En Islandia, la isla azul y blanca, no hay pájaros, tan sólo aves marinas, ningún canto, pero sólo el de las manos, manos que mueven no todas las piedras para que el musgo nazca y el verde empiece a cantar, entonces suave.
[Ida Vitale]

3.
GALÍCIA: AS CURVAS NEGRAS DA TERRA
(texto publicado na antologia asturiana dos nossos poemas, edição de Antón Garcia)
Minha chegada à Galícia foi terrestre, partindo de Valência, onde havia passado alguns dias na companhia do poeta e tradutor Joan Navarro, atravessei sobre os trilhos do trem boa parte da península ibérica. À janela alternava-se ao verde uma longa porção de ocre e açafrão, do lado de fora poeira e terra seca, moinhos modernos, do lado de dentro lembranças quixotescas. Não quis cruzar a Espanha pelas nuvens, já que o meu deslocamento era de uma minoria linguística e cultural à outra, do País Valenciano à Galícia. São muitos os países que fazem esse país e viajar às bordas dele era, no fundo, muito mais central. Fascina-me a ilusão da suspensão temporal que existe no curso da viagem, num voo rápido demais eu teria perdido as cores e a mudança lenta da paisagem, teria criado um atalho dentro do meu próprio cansaço. Minha enorme mala branca e rígida, já negociada em alguma viagem do passado entre as malas do meu pai, havia se quebrado mesmo antes de embarcar rumo à Galícia. Ao excesso de livros que eu já vinha carregando desde a Itália e Islândia, somaram-se as cópias valencianas, os inúmeros e preciosos presentes de Joan, e com isso rompeu-se o puxador da mesma abrindo seu casco de tartaruga feito um coco-verde. Tivera embarcado num avião, não teria vivido a luta por uma nova mala com preço aceitável na estação central de Madrid, teria perdido a diversão e a vergonha de tirar todas as minhas roupas e livros da mala quebrada para a nova mala dentro da loja enquanto outros clientes observavam com um misto de pena e curiosidade. Tivesse atravessado a península cruzando as nuvens, teria perdido o prazer de cada mordida que dei em meus oito bocadillos divinos preparados pelas delicadas mãos de Joan, teria perdido a extensão do seu olhar paterno e grave, o sorriso largo sob o bigode espesso, sua aflição para que eu não perdesse nem a hora nem a passagem impressa na noite anterior.
Minha chegada à Galícia foi por Ourense, escurecia e perdia-se a dimensão do verde que rodeava a cidade, à minha espera estavam Carlos da Aira, poeta, editor e agitador cultural galego, organizador do festival Poemagosto do qual era convidada e meu querido amigo Hu Xudong, poeta e professor conhecido em 2016 tomando um chá verde numa casinha na praça do Sino e do Tambor em Pequim. Pelas curvas e montes adentramos o verde e a noite rumo a Allariz. Deixamos nossas malas no hotel e embarcamos num passeio pelas ruelas, Carlos foi nos contando um pouco sobre a história do povoado e sobre sua vida, a musicalidade do galego misturava-se às luzes amareladas que se refletiam sobre as pedras das casas e das igrejas do burgo, nosso teto era um céu bordado de estrelas, nas vias uma brisa fria encanada guiava nossos passos aos quais alternavam-se risadas e silêncio. Em cada beco do centro havia um bar aberto ou um comércio fechado. Enfim chegamos à Igreja de San Bieito, construída no final do século XVIII, veio a ser minha referência para voltar sozinha, nas noites seguintes, para o nosso hotel. Em frente à sua fachada havia um cipreste alto e a torre do sino: eram dois, os ciprestes disse Carlos. Meu pai era o electricista do Concello e polo tanto era o encargado de instalar e colocar, cada ano, as luces de Nadal. Un dos lugares onde colocaban las bombillas de cores era nos dous cipreses que había, agora só fica un deles, na fachada da igrexa. El subía cunha escada de man ata onde a escada chegaba e depois subía polas pólas (ramas) da árbore, ata arriba de todo, onde puña a estrela máis grande… Tamén puña luces no alto do campanario da igrexa, e o último tramo había que subilo tamén a pé… Eu axudáballe a ter man da escada…
Toda viagem que faço inicia de fato quando eu me faço escuta, quando aguardo e conclamo histórias, quando as minhas lembranças se misturam àquelas dos que cruzam meus dias e a fabulação vai se entrelaçando ao vivido. Viajo à espera dessas narrativas e quando volto e escrevo, viajo novamente até elas. Começava naquele momento a Galícia, para mim. Aproximava-me ao centro de Allariz colando meus ouvidos à música da infância de Carlos, seus olhos brilhavam por trás da armação dos óculos, nos dias seguintes descobriria também que era um ótimo cantor. O poeta estava lá estendendo a mão, oferecendo-me uma fatia dos meu próprio versos contando-me as suas lembranças. Imaginava-o pequeno, as mãozinhas firmes pregadas às laterais da escada, os olhos reluzentes como hoje, seu pai uma espécie de herói da luz, o homem responsável por iluminar os ciprestes e a torre do sino, era ele quem anunciava a chegada do espírito natalino. Parecia-me feliz, Carlos, caminhando por suas recordações; já eu, em silêncio, vivia o desencaixe das minhas memórias da infância, foram tantas as mudanças, eram estilhaços que sobravam, e hoje, talvez, possa encontrar alguma reverberação de sentido nos versos de José Luís Peixoto em seu livro “A criança em ruínas”. Agora, pensando naquela noite com Carlos e Hu Xudong pelas ruas de Allariz, leio e rejunto: há a noite que entrou dentro de ti/ e no entanto o teu interior não é onde/ adormecem as crianças é onde se perdem/ os cegos não é onde há lua e estrelas/ é onde o negro não quer ser tão negro/ existes e só és o teu absoluto vazio/ um homem são os homens que o acompanham.

Nosso primeiro jantar foi no restaurante do hotelzinho em que nos hospedávamos, eu pedi polvo à galega e enquanto esperávamos tomando um bom branco das rias baixas, Hu Xudong me perguntou se eu já havia comido percebes, um crustáceo que só nasce nas costas atlânticas do norte, mas antigamente também existia na China, tem a aparência de uma pequena pata de elefante, disse, os chineses chamam-no dedos do diabo, pois alojam-se onde com as ondas quebram com maior força e é muito difícil removê-los, é uma arte arriscada. Não, eu não conhecia os percebes, que nome curioso. Então Carlos e o dono do hotel se juntaram à mesa, todos os anos morrem pescadores mundo afora e nada sabemos, todos os anos morre alguém aqui na Galícia pescando percebes. Um grande poeta e pescador galego, Paco Souto, faleceu pescando percebes. Mesmo antes de saber sua história, mesmo antes de conhecer sua poesia, enquanto ouvia à mesa os relatos de como se pratica esse tipo de pesca, vinha-me à mente a metáfora do gesto. O risco de colher o crustáceo à beira da quebra das ondas frente aos rochedos, beira-mar, beira-morte, como a colheita da palavra num verso escrito, num verso traduzido. Não quero enlaçar a morte e a pesca numa imagem poética, não posso fazê-lo. Enquanto ouvia a conversa sentia-me atravessada por uma estranha nostalgia de casa, pelo desejo de abraçar minha mãe, minha avó, minha tia. “Ese sabor a sal na boca/ Como se a morte viñese cada nove ondas", diz um poema seu. Os percebeiros calçam botas de cabedal ou tênis, levam à cintura dois sacos de rede e um outro de serapilheira, têm uma corda a tiracolo e à mão uma arrilhada, instrumento de trabalho para arrancar o crustáceo e para servir de amparo para os caminhos mais difíceis, algo entre uma lança e um arpão para manter-se distantes dos rochedos na hora da quebra das ondas. Certo seria conseguir puxar-se para cima dos rochedos pouco antes da quebra das ondas, certo seria escalar as pedras para ser arremessado contra elas com toda a fúria atlântica. Em algum lugar em mim a Galícia foi se misturando à Bahia e desligando-me da conversa já imaginava a mulher de Paco a lhe cantar a suíte do pescador de Caymmi, a mesma música que minha mãe me cantava na infância até me embalar o sono, ou mesmo uma canção de Zé Manoel na voz de Ná Ozzetti volta, volta pra casa que eu te espero/ volta pra casa que eu te quero/ volta pra casa que eu te velo. Viver à beira da morte a cada nove ondas. Em poucos dias estaríamos na Ilha de São Simão, famosa por ser o cenário de uma clássica canção do amigo, poema do trovador Meendinho, canção do século XII que diz: Estava eu na igreja de São Simão/ e cercavam-me as ondas, que grandes são. Eu esperando o meu amigo. E virá? Estaríamos juntos a colher palavras como crustáceos para compor nossas traduções em companhia de outros poetas. Hu Xudong e eu encontraríamos Estevo Creus, da Costa da Morte na Galícia, Rita Dahl, da Finlândia, Antón García, de Asturias, Tomica Bajsić, da Croácia e nessa pequena ilha que já fora um mosteiro, um cárcere, um orfanato e um leprosário, sob os olhos atentos e o coração amplo da poeta Yolanda Castaño trabalharíamos e viveríamos ilhados por uma semana, durante a sexta edição da oficina internacional de tradução poética “Con barqueira e remador”.
Cruzamos as montanhas rumo ao mar, em direção a Redondela, onde nos esperava Ramón, nosso barqueiro, na fatídica noite de outubro em que um imenso incêndio alastrou-se por Portugal e pela Galícia. Estávamos tão próximos do fogo, do lume como dizia Carlos, víamos as chamas ao nosso lado, uma muralha chinesa incendiada, o dorso do dragão de São Jorge em chamas, perdemo-nos um pouco mas enfim chegamos, intactos, envoltos numa nuvem tóxica, chegamos. Era a primeira vez que a oficina de tradução acontecia tendo o português como língua comum, como língua veicular, cada poeta apresentaria seis poemas seus e traduziria seis poemas de seus colegas para sua língua mãe, usando o português como moeda de troca. Trabalhei como poeta italiana e fui vertendo verso por verso, poema por poema do chinês, do finlandês, do galego, do asturiano e do croata para a língua de Dante através de Camões. Quando tento relembrar os dias dessa convivência íntima e intensa em que estava exposta a sonoridades desconhecidas por um lado e outras novas e tão familiares por outro, como o galego e o asturiano, via-me a explicar meus próprios poemas como nunca havia feito antes, questionada sobre cada imagem, tentava traduzir os jogos sonoros, algo da mesma matéria relatada por Elias Canetti em sua viagem à Marraquexe acontecia naquela redoma de vidro voltada para o mar, uma substância densa, maravilhosamente luminosa persistia em mim e zombava das palavras. Sentávamos após o café da manhã frente a frente, lado a lado e após ouvir o poema na língua em que fora originalmente escrito, tirávamos nossas dúvidas sintáticas, imagéticas, vocabulares. Depois do almoço continuávamos polindo nossas versões, oferecíamos de volta o poema passado pelos nossos olhos, nossas gargantas, nossos peitos, nossas raízes. Centrados no mundo de dentro, como o sonho de Canetti ao revés, não era um homem que desprendia as línguas da terra até não compreender mais nada em lugar nenhum, nós prendíamos as nossas línguas umas às outras e criávamos um espaço para a compreensão possível, deixando também um espaço para o incompreensível e intransferível de cada língua em sua particularidade. Do lado de fora da redoma de vidro o azul do mar se aproximava ao azul do céu, intercambiavam suas nuances durante o dia. Acordávamos com a maré baixa, a areia descoberta revelava a estátua de dois escafandristas que homenageavam o romance de Júlio Vernes “Vinte mil léguas submarinas”, num de seus capítulos contempla-se a baía de Vigo e a batalha de Rande. Vernes criava um elo mágico de uma ponta da viagem à outra, uma semana antes eu estava na Islândia e nos dias claros avistava-se desde Reykjavík o glaciar da viagem ao centro da terra, Snæfellsjökull.
Perscrutar os versos com tamanha atenção, abrir-se ao diálogo da própria poética de forma tão despida e desprotegida faz com que não se saia ilesos desta experiência, a poeta Dores Tembrás que havia participado da oficina no ano anterior, escreveu em seu texto de prefácio à antologia “Cartografias subterrâneas”: tentávamos nos aproximarmos de forma individual e atenta, convertendo-nos em confidentes, revelando muitas vezes caminhos desconhecidos para a mesma mão que escrevera os poemas. Naquele encontro íntimo em que buscávamos as nossas palavras para dizer as palavras dos outros, abria-se também uma fresta, uma ferida, uma escuta aguçada para a vivência do outro. Enfim muitas vezes a comoção chegava, como a maré alta, por acessar o silêncio do outro, senti-lo e traduzi-lo para si. Canetti diria: O que há na linguagem? O que ela esconde? De que ela nos priva? Ainda que cada um de nós carregasse sua língua distinta, sua história, seus versos, calávamos algo semelhante e inexplicável, por sorte o rosado do céu no fim do dia ocupava esse espaço do não-dito.
[Outubro, 2017]
72 declinações aos adjetivos! morri, rsrs. amei a edição! vai ser linda a residência
quanta notícia boa e quantas preciosidades aqui hoje <3
eu adoro Jhumpa Lahiri, estudei-a brevemente na universidade de Dalarna, é uma autora ótima. tô muito contente de saber que os trabalho dela está sob teus cuidados.
e parabéns pela seleção! espero que a residência te faça muito bem.
abraço, amiga.
continue escrevendo!