1.
Há poucos dias respondi a uma entrevista do jornal islandês Morgunblaðið cujo encarte cultural deve incluir algo sobre meu novo livro, Eignatal/Inventário, com um retrato e perfil de autora. Primeiro pensei em responder às perguntas em inglês para facilitar o processo tanto para mim quanto para a jornalista, mas depois, conversando com o Pedro (meu tradutor, a essa altura vocês já o conhecem), decidi responder em português e contar com sua generosa tradução. Fico até com vergonha pensando que um escritor da estatura dele traduza uma simples entrevista, mas a amizade tem dessas coisas inexplicáveis e às vezes demorar-nos nas palavras dos outros é uma forma de senti-los por perto. O sol e as cores nos dão um generoso aconchego ao voltar para o nosso país, contudo, a saudade dos amigos de lá também nos acompanha. Viver entre línguas e terras diferentes tem disso. Ganha-se muito, mas há de se aprender a viver com essa incompletude, a impossibilidade de ter todos os lugares e pessoas ao mesmo tempo. Essa incompletude bem vivida é fecunda e acompanha tudo o que fazemos. Conforme lia as perguntas em islandês e depois a tradução das minhas respostas… continuava a saltar da página a palavra INNBLÁSTUR — inspiração. A princípio não deveria causar nenhum estranhamento porque é literal e concretamente a tradução da palavra latina assimilada ao islandês. Contudo, ao vivermos distanciados da etimologia das palavras em nossa própria língua, a versão estrangeira é algo que grita e aponta um sentido prévio. Enquanto lia e relia as perguntas e respostas, pensava: brisa para dentro. Vento engolido? Ventania atrapada no peito?
Historicamente, ou pelo menos a partir do Renascimento, a inspiração é compreendida como algo inexplicável: repentina, romântica e irracional, impossível de controlar. Talvez por isso seja um conceito fortemente ligado à criação artística. A inspiração é vista como algo genial e fulminante. Também é muito comum negar a inspiração hoje em dia e colocar tudo na conta da transpiração, do trabalho, da edição. Eu concordo em parte. Claro que há a perlaboração da palavra, ainda assim há algo de “sopro” que nos chega e dirige nossa atenção a uma cena, a uma planta, a um animal, a uma situação familiar, à leitura de um poema e não de outro.
A origem da palavra inspiração é religiosa. Está relacionada com a intervenção divina — ou seja, o mais irracional e inexplicável que existe. A etimologia vem do latim inspiratio. A inspiração era considerada a base dos textos bíblicos, ou seja, a revelação de Deus ao homem através da palavra. Os textos considerados inspirados eram os sagrados, aqueles que continham a palavra de Deus. A palavra latina é composta por in– (“dentro” ou “sobre” — e Deus supostamente está acima dos homens e também pode colocar algo dentro deles) e spirare (“soprar”). Um bom sinônimo nesse caso seria “infundir”. De fato, no dicionário Treccani (dicionário italiano que consulto com frequência enquanto traduzo), o primeiro significado é a intervenção de um espírito divino que determina a vontade do homem através de uma ação sobrenatural. Faço todo esse preâmbulo porque havia uma pergunta sobre inspiração e, em vez de pensar de fato no que isso significa para mim e para minha escrita, fiquei obcecada com a palavra em islandês e só conseguia visualizar uma caixa torácica engaiolando uma ventania nórdica. Depois, por outro fio irracional, enquanto pensava na palavra, fui me lembrando de uma música que Caetano Veloso escreveu para Michelangelo Antonioni, e aí o pensamento seguiu em direção a um filme que não vejo há muitos anos e que foi dirigido por Antonioni e Wim Wenders e que estou absolutamente louca para conseguir assistir a ele novamente. Não sei por quê. Mas algo me diz que preciso ver esse filme. Meu pensamento nunca é linear e vai pulando de galho em galho por associações, preciso sempre domar esse instinto quando estou escrevendo um texto acadêmico. De fato, é por isso que faço sempre um esqueleto do texto de antemão, assim como preparo minhas aulas. Sei que posso até sair do roteiro mas preciso ter uma sequência menos errática para não perder meus interlocutores. Acho que aqui nessa cartinha vocês estão mais expostos aos meus saltos.
2.
Incluo aqui na sequência alguns trechos da entrevista em português, deixando a pergunta em islandês também.
Hvað annað veitti þér innblástur þegar þú skrifaðir þessi ljóð?
O que mais te serviu de inspiração ao escrever esses poemas?
Esse livro é muito diferente do meu livro anterior, sempre fui muito econômica no uso da palavra, talvez uma discípula fiel do hermetismo, com certeza uma discípula do mestre Ungaretti, apaixonada por haikus e tankas. Porém, Inventário/Eignatal me pedia algo diferente, menos economia da palavra e mais histórias mais íntimas. A maternidade foi com certeza uma grande inspiração para a última parte do livro, assim como uma sensação antiga, agora renovada, de não pertencimento. Esse é um tema central na minha obra, já o era no meu livro anterior, mas isso ficou mais acentuado vivendo num país tão distante do meu tanto geográfica como culturalmente, com a minha sensação de afasia por não falar a língua, em especial nos primeiros anos. Acho que a vida será sempre uma inspiração para a minha escrita, a demanda nasce de um desejo de entender algo que me escapa e que não posso nomear a não ser em forma de poema.
Fyrstu síðurnar staðsetja ljóðmælandann strax í íslenskum veruleika – hafði dvöl þín á Íslandi mikil áhrif á það sem þú skrifar í þessari bók?
As primeiras páginas colocam o eu poético de imediato na realidade islandesa – a tua residência na Islândia influenciou bastante as coisas que escreveste neste livro?
Com certeza esse é um livro que se transformou a partir da minha vinda para a Islândia. Já havia escrito a primeira parte antes de 2019, porém o restante foi escrito nos anos em que morei em Reykjavík. O primeiro texto, que é uma prosa-poética, foi antes publicado na “zine” Iceland in other words, editada pelo antropólogo e escritor australiano Christopher Marcatili. Eu e o meu querido amigo e tradutor Pedro Gunnlaugur Garcia decidimos que esse texto merecia fazer parte de Eignatal, pois funcionaria como um prefácio aos poemas. Sinto que meus anos na Islândia mudaram profundamente minha escrita, mas também minha vida e minha forma de ver o mundo e as relações. Não é possível viver na Islândia e não se deixar mudar e moldar pelo país. O que o clima e a natureza fazem com o território pode funcionar como uma metáfora para a alma. Lembro-me que o escritor italiano Tiziano Terzani, falando da sua experiência de viver na Índia, uma vez me escreveu num e-mail: “A Índia faz com a alma o que Paolo Uccello vez com a pintura: a descoberta da perspectiva”. Agora, mais de vinte anos após essas trocas de e-mail, finalmente entendo o que ele quis dizer. Só que, no meu caso, quem me deu essa tridimensionalidade foi a Islândia, com sua língua e suas paisagens, com as relações que criei no país.
Eins og fram kemur aftast í bókinni ertu í samtali við ýmis önnur skáld og ljóð þeirra – hvers vegna ertu í þessu samtali við ljóð annarra skálda? Hvernig nýtirðu ljóðin sem innblástur?
Como anotado no final do livro, estás em diálogo com vários outros poetas e poemas deles – por que te colocas em diálogo com poemas de outros poetas? De que forma aproveitas esses poemas com inspiração?
Acredito que estamos sempre em diálogo com outras vozes, muitas vezes aquelas dos que nos antecederam, mas também com os nossos contemporâneos. Minha forma de trabalhar quando escrevo poesia é uma negociação entre mundos. De um lado, o mundo externo, o mundo das observações, da paisagem, da realidade em que estamos inseridos, também é composto pelas minhas leituras, leitura de poesia e outras coisas. E por outro lado, o mundo interno, muitas vezes em ebulição e que não encontra palavras para dizer o que está se passando por dentro. Na escrita da poesia, há uma contaminação entre esses mundos, o externo e o interno. Gosto de citar os poetas com quem entro num diálogo explícito como se fosse uma forma de loucura e honestidade intelectual, acabo me desvendando e tornando-me mais vulnerável ao fazê-lo, colocando as cartas na mesa e abrindo o meu processo de escrita como num jogo de baralho. Nunca estamos completamente sozinhos em nossa inspiração, mas em contato e em diálogo com nosso tempo, nossos pares e nossos pais e mães, nossos avós literários.
Hvers vegna valdirðu titilinn Eignatal?
Por que escolheste o título Inventário?
O título em islandês, sugerido pelo meu editor Aðalsteinn Ásberg, é ainda mais bonito e poético. A palavra em português poderia se traduzir literalmente como “eignaskrá” em islandês, porém, segundo o meu tradutor, Pedro, a palavra em islandês não contém a mesma polissemia e carga poética da palavra “inventário” em português. Com isso, escolheu-se um título que valesse da mesma forma, sendo outra palavra, em islandês. Essa escolha foi um gesto muito refinado, afinal Pedro e Aðalsteinn possuem uma sensibilidade literária muito especial e, sendo eles também escritores e poetas, souberam reinventar o texto. A ideia central era criar uma espécie de lista ou compêndio de memórias, experiências vividas, sonhos, objetos perdidos.
Pedro Gunnlaugur þýðir ljóðabókina. Hvernig upplifun er að lesa þín eigin ljóð í íslenskri þýðingu annars skálds? Og lesa þau þar með á tungumáli þess lands sem þú ert meðal annars að yrkja um?
Pedro Gunnlaugur traduziu o teu livro. Como é ler os teus próprios poemas na tradução islandesa feita por outro escritor? E, com isso, lê-los na língua do país sobre o qual, ao menos em parte, estás escrevendo?
É um privilégio indescritível ter um tradutor da estatura de Pedro Gunnlaugur Garcia. Ele é um homem muito culto e um amante da literatura e das línguas, evidentemente a sua intimidade com o islandês é algo de outra ordem, assim como talvez seja a minha intimidade com a língua portuguesa. Poetas e escritores vivem uma relação passional com a língua em que escrevem, não é uma relação fácil. Mas o Pedro, além de grande escritor, é também um artesão da tradução, muito meticuloso e atento. Tivemos longas conversas sobre os meus poemas para que ele pudesse entender cada intenção por trás das assonâncias e imagens. Fez perguntas tão profundas que me obrigou a rever meu processo criativo e sustentá-lo para que ele pudesse então transformar em outra coisa. Eu ainda vivo um certo estado de apaixonamento pela língua islandesa porque, embora agora consiga me comunicar com certa fluência, não consigo usá-la para fins literários, tampouco consigo falar em islandês de forma mais profunda sobre meus sentimentos. Portanto, há um tanto de projeção. Sabe quando não conhecemos ainda profundamente alguém e descobrimos algo novo sobre ele e sentimos uma descarga elétrica de excitação e emoção? Eu ainda sinto isso com o islandês quando leio um poema ou ouço uma música. Ler o meu livro em islandês me provocou uma emoção muito profunda, como se eu finalmente pudesse dizer: olha só, Islândia, eu sinto muitas coisas por você, elas são bonitas, mas também são assustadoras e agora eu posso te contar isso na sua língua.
3.
Uma das grandes alegrias de escrever é encontrar alguns leitores que entram em diálogo comigo. Há diálogos mais íntimos que podem acontecer com tradutores, amigos próximos que leem meus manuscritos antes da publicação, amigos com quem mantenho uma correspondência em versos (uma espécie de caderno aberto para ambos, que nos lança no desejo da escrita), mas há também diálogos improváveis… pessoas que ainda não encontrei pessoalmente mas que sinto que me conhecem profundamente e foram tecendo uma relação distante (e muito próxima) comigo através das redes. Uma delas é Ettore Botti. Ele é um jovem ítalo-brasileiro que mora em Ragusa mas está sempre viajando pela Europa, é um leitor refinado, fala muitas línguas, é tradutor e professor. É também poeta e quero publicar aqui um poema ainda inédito dele (com a devida autorização, é claro!). Ettore já me mandou livros de Goliarda Sapienza, já conversou profundamente comigo sobre meu livro Errância, sobre o Repátria e agora sobre o Inventário, trocamos músicas e fotos dos nossos horizontes. Sinto um encantamento ainda mais especial por ele ser tão jovem e tão profundo, isso parece que me coloca em relação com minha própria juventude (passada). Uma vez quase nos encontramos em Londres, foi por pouco. Ele estava passeando por lá e na sequência eu cheguei para passar minha semana de estudo durante meu fellowship no ILCS (Institute of Languages Cultures and Societies). Ontem ele me mandou uma página do livro Montevideo de Enrique Vila-Matas. Vou colocar o texto aqui para vocês em foto.
Amo como no fundo a literatura é essa coisa de quem conta um conto aumenta um ponto, e isso faz com que as histórias sejam muito mais interessantes quando transformadas. A imagem dos exilados que carregam suas portas e atiram-nas ao mar é muito mais poética. Vou levar essa história (e essa imagem) comigo. Mas no fundo, de acordo com as sagas islandesas (principalmente o Landnámabók, ou “Livro dos Assentamentos”), foi Ingólfur Arnarson quem chegou à Islândia por volta de 874 d.C. Antes de decidir onde estabelecer seu assentamento, seguiu uma tradição nórdica lançando seus pilares do trono (öndvegissúlur) ao mar e fazendo um voto de se estabelecer onde quer que eles encalhassem. Esses pilares eram colunas de madeira esculpidas com símbolos sagrados e tinham grande significado religioso. Tipicamente, ficavam em cada lado do assento do chefe no salão principal e representavam autoridade, continuidade e a conexão da família com os deuses. Depois de lançar os pilares ao mar, os escravos de Ingólfur (veja bem, as pessoas que Ingólfur havia escravizado) os encontraram encalhados numa baía onde se via o vapor subindo das fontes termais, o que inspirou o nome Reykjavík (que significa “Baía Fumegante” ou “Baía das Fumaças”).
Há momentos em que acho que estou descansando e ao fechar os olhos começo a relembrar as ruas da minha antiga cidade, as sensações de caminhar por lá. Isso também me acontecia quando morava por lá. Fechava os olhos achando que estava descansando e era interrompida por uma lembrança involuntária das ruas de São Paulo, da sonoridade estrondosa dos carros e vozes, do breque dos ônibus. Agora estou suspensa entre o silêncio nórdico e ruído paulistano, no interior, ouvindo os passarinhos e ocasionalmente algum pagode alto proveniente de alguma casa onde deve estar rolando um churrasco hora dessas.
Vou encerrar essa cartinha com um poema do Ettore e com o pensamento que li no meu estranho horóscopo do dia “deixe a fantasia mais selvagem do seu futuro eu levá-la adiante”. Vou fazer isso, dar uma chance também à fantasia, afinal atirei-a ao mar e ela me trouxe de volta para São Paulo.
*
To kill a gummy bear
He was coming back home with a chocolate bar tucked inside his backpack. She looked at him twice, he only noticed the blonde tall girl the second time. It’s when the heart shouldn’t beat faster and your hands shouldn’t get all sweaty and she too shouldn’t have a boyfriend coming over from the other side of the street. The poem shouldn’t end up like this and love, at the end, should endure. The chocolate bar shouldn’t have melted all over his backpack once he had gotten back home. [Ettore Botti, 2024]
Um poema
UMA ESPÉCIE DE ROTEIRO
o falatório resvala pelo pescoço
ontem alguém subiu no terraço do prédio
as viaturas policiais lá embaixo não evitaram a queda
a carcaça se agitou
enquanto a pessoa caía o semáforo se abriu
eu pedalava pelo cruzamento
o asfalto golpeou o corpo
ouvir ossos se rompendo
a inspiração inesperada
o asfalto ensanguentado
não ouvi nada disso
enquanto as sirenes faziam silêncio
o mundo se partiu de leve
pedalo de volta para casa
o asfalto está quente
mais limpo que antes
diante do prédio
conto os andares
são dezessete
as janelas do mundo rangem
viro as costas
aceno
olhares
nenhuma rosa
junto às vergonhas
(traduzido do sueco finlandês por Luciano Dutra)
[ETT SLAGS FACIT]
berättelserna skaver längs med halsen
igår stod någon högst upp på hustaken
polisbilarna nedanför förhindrade inte fallet
kroppshyddan gungade till
medan hen föll slog trafikljusen om
jag cyklade över korsningen
asfalten slår mot kroppen
att höra ben brytas
andetag överraskande
blödande asfalt
ingenting av detta hörde jag
medan sirenerna tystnade
världen knakade lätt
cyklar hem
asfalten är varm
renare än tidigare
utanför höghuset
räknar jag våningarna
sjutton stycken
det viner i världens fogar
jag vänder mig om
vinkar till
blickar
inga rosor
längs med blygden
(Lina Bonde)
Que maravilhosa a imagem das portas lançadas ao mar e que lindo que essa seja a explicação, ainda que mítica, do nascimento de mais uma de suas "repátrias"... Nessa onda meio inspiração meio intuição em que vivemos afundados (sobretudo os que gostamos de ler e escrever), me veio de súbito um mash-up entre dois trechos de letras de música que amo: "as coisas estão no mundo/ só que eu preciso aprender" e "... as coisas conversam, coisas surpreendentes/ fatalmente erram, acham solução"
tao bonito que a ardência das feridas de quem te lê espelhando travessias geoculturais se amacia e sara, um canto suspirado a sua newsletter multilíngua tanta vida, grazie Francesca!