1.
Mamãe, o Andri tem duas casas, né? Duas casas, duas escolas. O Andri tem o Brasil e tem a Islândia. A Islândia é muito perto do Brasil é lá ó, muito pertinho. Sim, meu amor, dentro do nosso coração a Islândia é muito pertinho do Brasil, dentro do nosso coração. É muito pertinho mamãe. Sim, meu amor.
Foi assim que ele adormeceu, cabecinha encaixada em meu ombro direito, meu corpo virado quase por inteiro na direção dele, meu nariz farejando seu cocuruto cheiroso, os dois em seu colchão. Estava dormindo, talvez sonhando, quando acordou de súbito, chamou e quis conversar assim, entre a vigília e o sono. Foi isso que nos dissemos. Hoje, no parque Ibirapuera, entre brincadeiras e descobertas, avistou três cisnes pretos enfileirados e disse: sou eu, S. e O. (o nome dos seus dois melhores amigos na Islândia). Sinto o quanto ele está feliz e entregue à nova escolinha, aos novos amigos, movido pela sua curiosidade incessante, mas, mesmo feliz e amparado por esse amor maior que por agora ainda somos nós, seus pais, há a ambivalência de amar mais de um lugar. De amar muitas pessoas. Só tem três anos, é difícil tentar contê-las num espaço. Terá que aprender que isso será difícil e, no caso dessa família, impossível, provavelmente. Pegou o mapa-múndi e foi para o lado oposto da Islândia, avistou uma ilha bem grande, colorida de vermelho e disse: aqui papai, vai morar Andri, mamãe, papai, vovôlo, vovó Paula e vovó Veva. Era a Austrália. Ao ouvir esses relatos e outras elaborações noturnas, penso que meu mundo começou a se esgarçar só aos nove anos, eu já era bem mais velha do que ele, já lia e escrevia. Escrevia cartas e diários. Fui processado na escrita falha, na mistura de duas e depois três línguas esse compêndio de afetos, raízes e desterros.
Estamos há quase duas semanas em São Paulo, dia 14, segunda-feira, é meu aniversário. No primeiro domingo aqui, fomos até o Parque Ibirapuera, um sol intenso, ainda despreparados e desprotegidos, um pouco de repelente, mas nenhum protetor solar, o que resultou numa vermelhidão intensa para mim e numa careca descascada para o Luciano. Ouvimos um canto e começamos a segui-lo. Caminhamos até encontrar o coral dos alunos da escola de música do Ibirapuera. Um coro de jovens apaixonados pelo ofício, era um tributo a Djavan. Nos sentamos no chão em frente ao palco, ao nosso redor outras famílias, casais, cachorros; o Andri se acomodou entre minhas pernas e dormiu. Eu até tentei umas três vezes segurar as lágrimas, mas não consegui. A música tem dessas coisas. Passei meus anos fora (que em total foram mais de 20, esse ano faço 43) ouvindo música brasileira sem parar. Mantive a língua através da música e da conversa com meus pais. Minha mãe sempre teve um excelente gosto e imensa cultura musical (além de uma linda voz), encontrava pérolas raras nas lojas de CDs em Kuala Lumpur. Tudo isso vai soar muito cringe para meus leitores jovens (haverá leitores jovens por aqui?), mas a música, esse combustível que irriga meu coração, nem sempre foi tão fácil de acessar. Mas há uma bruxaria especial em ouvir Djavan estando em meu país, cantar baixinho e perceber que todos ao meu redor fazem igual. Nos primeiros dias de adaptação escolar do Andri, passei manhãs inteiras na Livraria Bibla (linda, maravilhosa livraria onde lancei meu Inventário) e o susto do primeiro dia: a música brasileira, as pessoas falando em português por todos os cantos. Racionalmente, não só sabia de tudo isso, mas foi justamente o que me colocou em movimento de volta, mas há outro lugar nos sentimentos, um lugar que fica desprotegido da razão e muitas vezes é uma voz, uma canção que atravessa e aniquila as defesas. Pensei: cheguei, chegamos. Sentados na grama no Ibirapuera, olhei para o Luciano, ele também com os olhos marejados. Era sábado e saímos andando em busca de alguma padoca que servisse feijoada. Era tarde e não serviam mais almoço. Mas o desejo. O calor, o suor, o cansaço e a confusão. Queria poder dizer ao Andri que eu também sinto saudades da Islândia. Que penso que a lua cheia ficará refletida no mar e será visível da nossa janela abóbada e isso me doi. A lembrança dessa beleza doi. O sorriso da minha amiga Fernanda, as caronas para irmos juntas à academia, passar pelos longos corredores da Hafnarhaus, nosso espaço de trabalho compartilhado, me perguntando se ela estaria em sua sala ou já teria ido almoçar. Os abraços da Antje, minha amiga alemã com coração latino, abraços apertadíssimos, olhos embargados ao falarmos da vida e dos filhos. O consolo é pensar que nossa cama ficou com a Antje, que a Fernanda passa em frente à nossa casa para ir malhar todos os dias e se lembra de mim. A O., amiguinha do Andri, ainda não parou de perguntar à sua mãe sobre ele. Mas não tenho como ensinar ao Andri como segurar uma alegria triste no peito. Ser feliz sentido a pontada de algo que escapa, que falta. Que a incompletude começou logo naquele primeiro segundo de vida quando nos separamos, quando ele saiu de mim e ficou deitado antes na minha coxa, roxinho e sujo, depois no meu peito, abrindo de leve o olho direito e esquerdo mais fechadinho. Nosso primeiro encontro como um reencontro eu já lhe apresentando o mundo e dizendo: a mamãe te ama tanto, meu filho, bem-vindo. A parteira sem entender uma palavra me dizia que era bonito ouvir aquele som sem sentido. Agora a felicidade pesa mais porque estou nesse líquido viscoso e uterino que é a minha língua, um país onde sei brigar e me defender, o mesmo em que converso com as pessoas na rua, passo raiva e alegria.
Também fui feliz longe do calor, do sol e da minha língua, mas estava ficando como uma planta ressecada naquela latitude. Mudar para me manter viva, mas não desprezar as coisas boas que vivemos que serão sempre nossas porque estão em nós. Ainda não sei explicar isso para o Andri. E talvez ele ainda não possa entender. Sinto que ando aprendendo há tantos anos essa alegria com uma pontada de tristeza e só agora, só agora depois dos quarenta consigo segurá-la como um grão de sal que dá sabor à comida. Enfim, o coração continua vivo, ainda tem a capacidade de amar e se machucar e ganhar e perder afetos e fazer suas apostas. Não endureceu por completo. Não vou poder ensinar isso ao Andri. Alguma coisa talvez sim, mas ele terá que passar pelas suas perdas e esse coraçãozinho tão jovem que já amou e já se despediu ainda vai amar muito, ser amado, passar por encontros, desencontros, despedidas. Talvez não possa ensinar muito, mas posso apresentar algumas músicas, ajudá-lo a deixar as barreiras caírem e sentir com o som.
2.
Essa cartinha chega tão atrasada que até pensei em desistir de escrever. Agora vem a parte menos poética e mais pragmática, mas que sinto também pertencer à essa edição. Ainda tentando organizar a rotina de estudo, tradução, preparação de aulas, tudo que gira também ao redor da organização da vida prática, como levar e buscar Andri na escolinha ainda sem carro, qual seria o melhor plano de saúde para o nosso bolso, onde passar minhas horas livres para trabalhar sem me perder nas infinitas travessias da cidade: voltar para casa, ir todos os dias para a USP, me apoiar em algum café? O outro motivo de atraso foi a finalização e revisão da tradução de um romance belíssimo que espero chegue em breve às mãos dos leitores e leitoras. Não vou divulgar nada antes da hora, mas só digo que é um romance escrito por uma autora que está sendo redescoberta em muitas partes do mundo e que foi nomeada por Elena Ferrante entre suas autoras preferidas. Que livro bom! Há um momento no enredo em que a protagonista se depara com o fato de que a empregada doméstica (por quem ela desenvolve certa obsessão) de vez em quando roubava da antiga patroa para ajudar sua mãe a pagar uma vaca que havia comprado, morando no campo. Descreve esse ato transgressor com certo pudor, mas a escuta ocorre com tamanho tesão que o erotismo parece respingar no pensamento da narradora protagonista. Ela mais tarde fará uma breve consideração, quase ensaística, sobre a contravenção. No fundo, se pergunta o que significa fazer algo contrário ao que é esperado de nós, fala sobre os relacionamentos mas também sobre a pressão do trabalho, sobre as armadilhas intelectuais e ideológicas. Roubar o tempo, é assim que ela interpreta a contravenção. O livro é um verdadeiro deleite. Fiquei pensando com ela, como de certa forma, para mim, escrever essa newsletter ou escrever poesia, nesse momento da minha vida, também é uma forma de contravenção. Não deixa de ser um furto à iminência de todas as minhas obrigações: trabalho, família, organização prática da vida. E para me chafurdar um pouco mais nesse sentimento, ao entregar o livro, em vez de me jogar de imediato em outros projetos que demandam minha atenção, simplesmente assisti pela quinta ou sexta vez ao filme Amor à flor da pele, de Won Kar Wai. Havia lido que seria projetado restaurado no cineSesc, lembrei-me de vê-lo lá a última vez, talvez há uns seis anos. Então sintonizei no MUBI e entrei de cabeça de novo naquela narrativa. Quase duas horas de contravenção.
Desde que cheguei, faz só duas semanas, tive a alegria de participar do evento organizado por Luna Martinelli e Paula Autran, Escrita na Cena, no teatro Cemitério dos Automóveis, li alguns poemas do meu livro Inventário e um inédito escrito especialmente para aquela noite. Estiveram comigo Bárbara Cristina, Daniela D’eon e Mariana Basílio. Consegui escapar de casa para o lançamento de Adormeço. Mereço? – livro póstumo de poemas de Lygia Azeredo organizado por Augusto de Campos, publicado pela Editora Cobalto, numa noite de imensa emoção, no palco as leituras de suas netas Julie e Raquel, além de Simone Homem de Mello, Adriana Calcanhoto e Leonora de Barros. Foi muito emocionante pois, muitos anos atrás, tive a honra de conviver um pouco com Lygia e Augusto. Revi muitos amigos e amigas, me demorei demais nos abraços, nas risadas e nos sorrisos, na promessa de encontros agora que estamos por aqui. Recomendo muito esse livro de poemas. Recomendo também outro livro, que ainda não terminei, mas está me pegando de jeito e não consigo largar (embora seja constantemente obrigada a fazê-lo por força maior!), tenho andado com ele na bolsa. É o Diário do fim do amor de Ingrid Fagundez. Espero voltar a falar dele por aqui. No mais, tive a imensa alegria de participar de um bate-papo organizado por um grupo de pesquisa da Universidade Federal da Bahia, o grupo se chama PLIT — Grupo de Pesquisa em Literatura Italiana e Tradução, a convite da professora Tatiana Fantinatti que, além de ser uma pessoa tão gentil e interessante… tem, como eu, uma paixão por música, por música latino-americana, e enquanto preparamos os bastidores da nossa conversa, também trocamos muitas músicas! Vou deixar o link da conversa por aqui, quem for aluno tem dez dias para se inscrever no link que encontrará no vídeo para receber um certificado de presença.
3.
Ontem foi um dia muito especial, tomei café da manhã com as pessoas que sempre foram minha família aqui em São Paulo (antecipando meu aniversário, que é hoje) e continuaram sendo, mesmo de longe. Um amor tão fundo e tão lindo vê-los crescendo, mudando, vendo meu filho com eles. O coração se enraíza sempre nos outros. Outro, essa terra fértil.
Um poema
[HVÍTT]
Meðan við sofum
leggur hún nýstraujuð lök
á göturnar
ferðast innundir
augnlokin
flæðir ofan í æðakerfið
ég vissi ekki að við værum svona þyrst
í birtuna
ég drekk mjólk úr glasi
og finn að hún er líka þar
í hendinni sem heldur á vökvanum
borðinu sem stendur á fjórum fótum
röddinni sem hljómar í útvarpinu
(traduzido do islandês por Francesca Cricelli)
BRANCO
Enquanto dormimos
ela coloca os lençóis recém passados
nas ruas
viaja por dentro
das pálpebras
flui no sistema circulatório
eu não sabia que éramos tão sedentos
de claridade
bebo leite de um copo
e percebo que ela também está lá
na mão que segura o líquido
na mesa que está sobre quatro pés
na voz que ecoa no rádio
(Ragnheiður Harpa Leifsdóttir)
tocante!
Amiga, não te dei feliz aniversário 🙈 E pior que quem ganhou o presente fui eu: que edição linda! ❤️