SILVER WAVES SUMMIT IN WHITE LACE
a luta contra o patriarcado, o ódio às crianças e a passabilidade europeia
1.
Mais uma semana onde sentar e escrever tornou-se algo impossível, ou mesmo trabalhar, o único exercício de escrita tem sido a correspondência com um amigo em forma de haikais. A semana de transição entre a Islândia e o Brasil, na Itália, desencadeou fortes emoções e a erupção inesperada de algumas lembranças. Ainda não é possível elaborar em texto, mas como não quero abandonar esse caderno, essa correspondência feito garrafa no mar, vou recuperar um trecho de um capítulo do meu livro Errância que está esgotado e foi publicado em 2019 pela Edições Macondo e Sagarana forlag. Neste capítulo, entre outras coisas, falo um pouco da minha infância aqui na cidade onde estou.
Sexta-feira, no final da tarde, estava numa loja comprando uma blusa quando Andri me comunicou que precisava ir ao banheiro, tentamos correr mas não deu tempo. Tudo bem, é normal, pode acontecer. Na Itália, muitas vezes, os banheiros em estabelecimentos privados ficam trancados e é preciso pegar a chave num balcão, normalmente é assim nos bares (cafés). Pois bem, nessa loja, que tornou-se enorme nos últimos anos, há um café e lá estão as chaves de três banheiros: um masculino, um feminino e um para portadores de necessidades especiais ou para famílias, pois há um trocador. Conversando com as simpáticas baristas, optei pela última opção para poder ter mais espaço para trocar as roupas do meu filho. Qualquer mãe ou pai que passaram por um desfralde recente sabem que é possível que aconteçam acidentes e portanto é normal carregar outras mudas de roupas para todo canto. Estamos lá na nossa peleja quando alguém bate à porta e eu instintivamente digo é occupato e sigo adiante. Esqueci de passar a chave. É comum que uma mãe assoberbada com várias bolsas e trocas de roupas e mais uma criança molhada se concentre no filho e não na porta. Poucos minutos depois houve uma invasão. Não contente da minha resposta é occupato, uma senhora da minha idade (sim, somos senhoras) invadiu o banheiro onde eu estava trocando meu filho (já sem roupas) aos berros dizendo non è mica un camerino, se deve cambiarlo lo porti fuori, isso não é um trocador, se é só trocar traga ele pra fora. Claro, natural para ela eu expor meu filho nu no meio de uma loja de departamento. Respondi no tom e disse que havia mais dois banheiros, era só pegar a chave no bar. Um minuto mais tarde ela abriu novamente a porta aos berros dizendo que os outros banheiros estavam ocupados e que eu deveria sair de lá com meu filho. Claro, uma criança não é um sujeito. Atender às necessidades dele, limpá-lo, trocá-lo, ajudá-lo a lavar as mãos era uma ocupação ilegítima daquele espaço: ela era uma adulta que precisava mijar, que eu jogasse a criança seminua pelos corredores da loja. Acontece que quando estou na Itália passo por uma transformação muito íntima, uma combinação de transformer com Hulk e Lilla Cerullo. Sei me defender. Sei ser grossa. Sei ser exatamente como quem está me chamando pra briga. Pois bem, na terceira invasão pedi para o Andri ficar de lado, fiquei à soleira da porta e soltei um sonoro mavffanculo, stronza, ma te ne vuoi andá eccheccazzo! Claro que não terminou aí, a baixaria foi aumentando e meu pai que estava no corredor acabou se envolvendo. Saí de lá completamente envenenada e aos prantos. Assustada por ter assustado o Andri, assustada comigo mesma. Quem era essa pessoa violenta, mesmo que em legítima defesa, mas quem era essa pessoa? No fundo só estava tentando defender seu espaço e seu corpo. É que há mesmo quem odeie crianças. Havia me esquecido disso. Uma cena dessas seria impensável na Islândia onde os banheiros não tem chaves com guardiões, onde há sempre espaço para as crianças e tolerância com suas necessidades. Qual será o próximo mondo cane que me espera? Luciano diz que dirijo de forma totalmente diferente na Itália, corro e sou agressiva no trânsito, solto palavrões a cada poucos quilômetros. Nosso ambiente nos transforma e acho que a Ferrante conta muito disso em seus livros.
2.
Penso numa coisa absurda de vez em quando, ou seja, penso que a luta contra o patriarcado já começou lá no útero. Minha mãe passando por trabalho de parto e sendo assustada pelo obstetra, uma cesárea talvez desnecessária, eu afastada dela, as histórias que contam. Já uma luta antes de nascer porque existe essa posição de domínio e poder que subjuga duas mulheres, a mãe parturiente e a filha que está por nascer. E é só o começo, as coisas não melhoram. É uma conversa inocente em que um pai se preocupa que a carreira da filha fará com que seja difícil que ela se case, pois que homem acompanharia tanta mudança, um avô que acha um absurdo morar numa república mista, outro que não entende porque cultivar tanta ambição em relação à carreira, enfim com todo o dinheiro que os pais gastaram comigo morando fora, com todas as línguas que falo, deveria simplesmente mandar meu currículo para essa vaga de secretária executiva. Mas ninguém faz nada de forma tão frontal. É um recorte de anúncio de emprego aqui, um comentário acolá, ou até um siêncio. Que tipo de espírito de transformer, Hulk e Lilla Cerullo é necessário para simplesmente não sucumbir às expectativas e projeções dos homens?
3.
Toda vez que sofro uma violência dessas, como no banheiro da loja ou como quando atravessando na faixa com meu filhos nos braços também fui mandada affanculo por uma motorista que não queria parar para nos deixar atravessar porque enfim siamo tutte state madri, segundo ela, todas já fomos mães, penso na minha pele branca (no Brasil e na Itália pelo menos) e na minha passabilidade europeia que está arraigada no fenótipo, na fala sem marca de sotaque. Essa minha passabilidade que me protege de violências muito maiores que outros italianos vivem todos os dias em suas peles, porque são negros, porque são asiáticos, porque não têm o sotaque certo. Penso em quanto amo imensamente meus amigos de infância, meus colegas de faculdade, mas como há um hiato intransponível entre nós porque minha passabilidade fez com que muitas das nossas diferenças se apagassem. Eu as apaguei. Fui me mimetizando com tamanha precisão, no desejo de uma suposta integração, de forma tão inconsciente, que não sei bem onde deixei os outros pedaços de mim. Só fui encontrar alguns desses pedaços anos mais tarde traduzindo Igiaba Scego. Queria ter encontrado a Igiaba na minha infância, antes de ela ser escritora, antes de eu ser poeta e tradutora. Talvez naquele passado estivéssemos nos preparando para ser o que somos, dentro do casulo das nossas solidões.
4.
Não sei bem qual é o motivo, mas meu pai é a única pessoa de quem me despeço e tenho que segurar o choro. Não porque eu não possa chorar, mas porque é só quando me despeço dele que sinto de fato vontade de chorar. Dessa vez não foi diferente, mas segurei e não deixei sequer uma lágrima correr. Quase como numa brincadeira do destino, nosso despacho de bagagens foi super tranquilo, mas muito mais do que isso, contamos com a simpatia do pessoal de terra da companhia área que não só pesou todas as malas juntas para que não tivéssemos excesso de bagagem como incentivaram o reembolso da taxa que havia pago para levar a cadeirinha do Andri. Tem esse jeito italiano que também me faz sentir em casa e é um contraponto à experiência tão violenta que sofri numa loja de departamento há poucos dias. Um jeito disposto a resolver problemas, a brincar e conversar com as crianças e acomodar tudo da melhor forma possível, sempre com um sorriso. Essa sensação ambivalente de amor e ódio que sinto é mais um traço de pertencimento indelével, não importa que já sejam vinte anos que não moro mais aqui, continuo voltando, continuo me sentindo em casa para o bem e para o mal. Pertencer é querer ficar e também querer partir.
5.
Trecho do capítulo: Memória do vítreo, Errância, Macondo Edições e Sagarana forlag, 2019.
Era dezembro de 1991, mudamo-nos para a Itália. Quiçá em fuga da crise econômica e política, quiçá em fuga por outros motivos. Nunca há uma única razão, costumam se misturar os fatores até perder-se o fio e não haver mais uma resposta clara quando alguém pergunta: por que foram embora? Eu tinha 9 anos, o limiar da idade para a aquisição de uma segunda língua com a mesma valia da língua materna, dizem. Será? Ainda que as motivações complexas da migração familiar escapassem à garotinha de 9 anos, mantinha-me orgulhosamente em pé, relatando a flutuação dos índices de inflação da era Collor. Eloquência que provocava diversão e espanto no rosto dos pais de alguns coleguinhas.
Eu fui na frente com o pai, a mãe seguiu dois meses mais tarde, em fevereiro de 1992. Esperamos pela sua chegada no aeroporto de Fiumicino com um maço de flores campestres e um carro novo, um carro velho, um carro lindo, o carro dos sonhos, um Talbot Solara azul cromado, vidros elétricos a cauda comprida feito um barco. Eu confundia seu logotipo com aquele das polos Sergio Tacchini pescadas nos bancos de roupas usadas no mercado americano da cidade, mercado das pulgas, il mercato del martedì. Um carro de segunda mão com tanque a gás, era o que se tinha. Um carro de zingari que destoava em marca, cor e idade, afastando-se das pretensões da classe média italiana imersa na bonança neoliberal dos anos noventa. O veículo que me fazia sonhar, tão diferente do Fiat 127 azul marinho que tivemos, ou o Escort da Ford com teto solar, denunciava, por outro lado, a marginalidade de uma família munida de documentos e à procura de uma nova vida. Migrantes da terceira geração desembarcados numa pequena cidade ao sul de Roma onde nos esperavam uma avó e uma tia.
A graça dos migrantes da terceira geração é que se sentem, de fato, cidadãos repatriados. É como se a narrativa dos pais e dos avós fizesse a ponte e preenchesse o hiato entre a vivência e o passaporte. Um desejo de ser italiano a todo custo porque é o que lhes dizem desde cedo. Latina já tinha sido Littoria, fundada pelo fascismo, literalmente emergida do pântano saneado, antes colonizada pela pobreza interna e oriunda do nordeste italiano, pois foram os vênetos os primeiros desbravadores, nos anos vinte do século vinte, daquele canto de mundo. Pequena e imaginária, como saída de um quadro de De Chirico, por certo com a alma ainda enraizada no pântano, suas cores iguais se repetiam esquina após esquina preenchendo linhas duras e paralelas erguidas do papel ao concreto, encarnando na urbe miúda o sonho do racionalismo italiano. Nas bocas de lobo ainda reinava o fascio, reminiscência de sua fundação, nas praças e pelas esquinas esculturas heroicas, as calçadas rarefeitas e as ruas esburacadas. Decaindo aos poucos sob a intempérie do tempo, ainda restavam as marcas da aspiração de um regime.
***
Nas lentas idas e vindas até o pequeno hospital do interior, até o interior, o meu, o dele, o da terra, fazia-me companhia a visão da doença e o horizonte da morte. Agora, mais do que nunca, ele precisava de amor, não só o meu, mas todo aquele que não lhe foi dado e com ele a vida tinha falhado. Desse amor faço-me portadora, é o que anotei no bloco de notas do celular enquanto o ônibus saía da rodoviária Barra Funda em direção a São Roque numa manhã de maio de 2016. Portadora fantasmática, dei-lhe o que eu não tinha e fui o que eu não era, fiz-me presente como pude. Quando chegava, me deparava com as enfermeiras cansadas das suas reclamações, olhavam-me aliviadas, desde cedo estavam avisadas que a neta apareceria. Sei que essa é só uma lembrança do futuro, é o que escrevi, escrevo para entendê-la amanhã. Sigo compreendendo pouco da morte que surge no horizonte que não se vê, mas atiro-me, agora, sobre os grãos de memória que passeiam-me à mente como caudas de peixes luminosos no aquário de um vítreo descolado. Tento conter o movimento contínuo com as mãos e arriscar um desenho, um contorno, algo que indique outra coisa, caminho de pedras, constelação. Quando criança, observava os peixes no aquário montado pelo pai e, quando seguiam meus dedinhos deslizando sobre o vidro, sentia-me uma encantadora de peixes e desenhávamos uma coreografia em conjunto. Havia o olhar e o ruído do dedo deslizando minúsculo e com dificuldade sobre a vitrine aquática. Entre as paredes vítreas, na água, viviam lebistes, ou barrigudinhos, peixes betta, combatentes-siamês, todas caudas coloridas entre os tufos de algas e pedrinhas e um peixe-rato, cor de pedra, com sua boca imensa aderida à transparência das paredes. Dedos e caudas.
Mantive um diário itinerante enquanto cuidava do avô paterno pouco antes da sua morte e descubro-o por acaso enquanto procuro outras anotações.
***
A lua já foi muito mais próxima da terra há vinte mil anos, diz Knausgård no livro escrito para nomear o mundo à filha ainda em gestação. Terá sido enorme essa lua vista da terra naquele então. Suas crateras são povoadas pelos resquícios das erupções vulcânicas. Havia vulcões por lá, há três milhões de anos. Procuro anotações sobre minha primeira vista aérea da Islândia, sobre a aterrissagem numa paisagem lunar em outubro de 2017, mas o que encontro são as lembranças do futuro da morte do avô. “Como se diz Deus em islandês?” Não um deus todo-poderoso, mas um deus mínimo, gêmeo de cada um, diria Valter Hugo Mãe, como a quebra branca das ondas sobre a areia negra, a intermitência das nuvens, a ausência de árvores, as crateras e o musgo verde que tudo encobre por aqui. Aqui era lá enquanto eu anotava apressada o que via pela janela. Como dizer deus em islandês, aquele de Leonardo Fróes, o deus que move os marimbondos a refazerem a casa sob a chuva, o grau máximo de compreensão relativa, diz o poeta.
***
Migrante eritreu vindo da Líbia morre um dia após a chegada do barco à cidade de Pozzallo, na Sicília. Desnutrido e doente, encontraram, após a morte, dois poemas escritos em tigrino no bolso da calça. Se tenho paciência, não quer dizer que estou saciado. Tesfalidet Tesfom manteve-se vivo agarrando-se aos versos até encher os olhos com efemeridade da outra margem do Mediterrâneo.
6.
O título da cartinha de hoje vem desse haikai que escrevi essa semana:
Silver waves summit in white lace —
the petals have fallen,
bulging fruit awaits.
Um poema
A TRISTEZA TEM ONZE NOMES No ponto mais alto da ilha guardamos a tristeza lá ela se mantém melhor a viúva assombra a torrezinha que seus filhos construíram para ela sob a laje de pedra repousa a jóia lavada em leite materno dois longos anos esperançosos dormecom seus irmãos a tristeza tem onze nomes
(traduzido do islandês por Francesca Cricelli)
[SORGIN BER ELLEFU NÖFN]
Á hæsta punkti eyjunnar geymum við sorgina þar heldur hún sér best ekkjufrúin gengur aftur í turnhýsinu sem börn hennar reistu henni undir steinhellu sefur gimsteinn laugaður móðurmjólk í tvö vonlöng ár sefurhjá systkinum sínum sorginber ellefu nöfn (Sunna Dís Másdóttir)
Ah, essa "nossa" Itália, xará mia. Tão violenta e contraditória. Infelizmente, já tive minha cota de ter de dar berros (com sotaque, pq não falo perfeitamente como vc, mas em "bom" italiano) para ter situações resolvidas por lá.
Quando meu filho era bem pequeno, não tinha nem dois anos, fomos a Paris, onde o pai estava passando uma temporada com uma bolsa. Uma viagem longa, um fuso pesado, de noite, no supermercado, ele estava irritando e chorava. Um velho brigou comigo, queria que eu calasse o menino, tentei explicar a situação, o avião, o cansaço. Ele falou que nada daquilo importava. Curiosamente, na Itália, que tinha sido a primeira viagem internacional dele (sempre nos rastros do trabalho do pai), tínhamos sido mt bem tratados, nosso bebê era um rei, até comentamos isso na época. A conclusão a que chego é que tem gente que não gosta de criança em qualquer lugar!
Ti tolgono il rispetto ogni volta che tu non reagisci. Eppur...