Raízes aéreas
Meu professor preso na Rússia, o prêmio Nobel islandês e a síndrome de impostora
1.
Há uma semana meu antigo professor de história, Marc Fogel, foi finalmente libertado do cárcere russo onde esteve detido nos últimos três anos e meio por porte de maconha medicinal. Havia sido preso no aeroporto, ao voltar para Moscou onde morava e trabalhava como professor numa escola internacional, após um período de férias nos EUA com a família. As notícias atravessaram o mundo e até mesmo na Islândia falou-se do caso. Mr. Fogel, assim eu o chamava, foi meu professor de história no terceiro ano do colegial quando eu morava em Kuala Lumpur, na Malásia. Estudei por uns seis ou sete anos numa escola internacional quando minha família morou por lá. Fogel era uma figura excêntrica, um professor apaixonante e prestativo. Eram os anos de 1990. Ele tinha cabelos encaracolados e um pouco longos, cor de graúna, um sorriso amplo com dentes branquíssimos e perfeitamente alinhados, costumava usar óculos escuros presos atrás da nuca com um elástico colorido. Tinha algum parente italiano em sua linhagem, por isso arranhava uma palavra ou outra quando conversávamos. Era diferente dos outros professores estadunidenses, tinha um interesse e uma inclinação para se aproximar do outro. Nas aulas, não nos forçava a entrar num padrão nativo, mas negociava distâncias e formas de pensar ou fazer circular o conhecimento. Como professor, Fogel nos ensinava a reverenciar o espaço de aprendizagem: todas as manhãs, antes de chegar à escola, passava por um templo hindu localizado no mesmo bairro onde ficava a nossa escola e comprava algumas guirlandas de jasmim. Ele não tinha carro, na época ainda não tinha filhos, dirigia uma scooter como a maioria da população local, usava sandálias de couro e um casaco vestido ao contrário para se proteger do vento e dos insetos que vinham em sua direção. Chegava com as flores penduradas no pescoço e logo as colocava em algum lugar da classe, segundo ele um templo do saber. Tínhamos que remover nossos sapatos para entrarmos na sala de aula, algo que de fato é comum tanto na Ásia como no norte da Europa: não se entra em casa com os sapatos que andaram pela rua. No entanto, era o único na escola que pedia aos alunos que ficassem descalços. Era o único a sugerir que havia algo de sagrado naquele encontro. É estranho ter acompanhado um pouco dos bastidores do movimento para que ele conquistasse o status de “detido injustamente”. Sei que ele é uma pessoa do campo progressista e que deve ter se sentido estranho participando do teatrinho político do seu presidente inominável. Imagino a alegria de voltar ao próprio país e rever a esposa, os filhos, a mãe e a irmã. Sei que durante os anos de cárcere deu aulas de inglês aos colegas detentos. O que mais me marcou ao observar o vídeo da soltura e do deslocamento até o aeroporto para ser repatriado foi uma cópia puída de Anna Kariênina que carregava consigo.
2.
A Islândia gosta de se gabar de ter o maior número de prêmios Nobel per capita. É óbvio que isso é devido ao número reduzido da população. Para além das brincadeiras, há uma notícia no meio literário que deve animar muita gente: Halldór Laxness (prêmio Nobel de literatura de 1955) será finalmente publicado no Brasil em tradução direta do islandês por essa que vos tecla junto ao meu amado parceiro Luciano Dutra. Sairá pela Editora Zain, cujo catálogo é muito especial, pois trata-se de uma casa editorial que é “música em forma de livro”. O romance Brekkukotsannáll, literalmente “Anais do casebre da encosta”, sairá no Brasil com o título Os peixes também sabem cantar, título semelhante ao que o livro recebeu em diversas outras edições internacionais, numa referência a um trecho que é um dos ápices dessa narrativa tão pródiga em pontos altos. Trata-se de uma espécie de romance de formação do jovem Álfgrímur, garoto adotado pelos donos de uma casa humilde que é quase como uma pensão à beira do lago no centro de Reykjavík, na encosta próxima ao antigo cemitério da capital islandesa. Sua mãe está de passagem em direção à América do Norte, dá a luz e deixa o filho aos cuidados desses amorosos avós tortos. O protagonista abre o romance dizendo que, após perder a mãe, não há nada melhor para uma criança do que perder também o pai, proclama-se livre de ressentimentos com relação às circunstâncias em que veio ao mundo, mas reconhece que isso se deve ao fato de que teve um avô e uma avó. O romance tem belezas que atravessam muitas camadas, um pouco como uma montanha islandesa vista de longe com suas sedimentações coloridas, mas há algo em especial que diz respeito à filiação e à herança que me tocou profundamente. Enfim, bem no começo do romance, Álfgrímur, o narrador e protagonista, constata que talvez a maior maldição tenha recaído sobre o pai e a mãe, não tanto por ele ser ou não um filho exemplar, mas porque “os filhos são de fato mais necessários aos pais do que os pais aos filhos”.
No turbilhão da organização da nossa mudança para o Brasil, sinto na pele as palavras do protagonista do romance islandês. De fato, tenho sentido o quanto meu filho me aterra à vida e o quanto me acalma a função repetitiva com os cuidados. Mesmo quando uma mudança é boa e desejada, mesmo quando se busca um deslocamento para manter-se vivo e feliz, é difícil acompanhar o movimento. Os sonhos vão abrindo uma mata à facão durante a madrugada. Desperto-me mesmo quando A. dorme a noite toda. Outro dia, cheguei em casa tarde pois dei aula até às 22 horas. Li e assisti a um filme, mas mesmo assim não conseguia abandonar o corpo (e a mente) a um estado de relaxamento. Fui espiar o sono do meu pequeno, temerosa para não acordá-lo, fiquei ouvindo sua respiração funda, observando a boca levemente aberta e uma silhueta de dente do lado de dentro. Abraçado à ovelha Choné e à toupeirinha, ele estava entregue, talvez processando algum acontecimento escolar em seus sonhos. Melhor do que uma valeriana. Deitei, abracei o L. e dormi. Não vou dar nenhum spoiler do livro, mas há uma simetria bonita entre as palavras que abrem o romance e a imagem da cena final. Uma imagem que me parece ressurgir depois em algum filme do Tarkovski. O livro fala de uma herança em termos de passar à geração mais jovem algo sobre entrar em relação com o desejo e sustentá-lo com certa ética. Há um tensionamento ético que atravessa o romance e que diz do lugar da arte na vida. De um lado as bajulações vazias, de outro algo que poderia ser lido em chave religiosa, mas que talvez aponte a transcendência que se pode experimentar no fazer, na ação, no meio e não no fim de uma obra.
3.
O caso do meu professor de história me fez pensar como nunca estamos isentos de ser um peão de pouco valor no tabuleiro das grandes potências e que poderemos sempre servir, ou não, como moeda de troca. Fico curiosa pensando se um dia ele irá escrever sobre sua experiência de encarcerado na Rússia. Um homem inteligente e eloquente como ele. Fico imaginando quais estratégias ele deve ter adotado para manter-se vivo naquele cenário de privações, alienação e talvez falta de um horizonte de esperança. Ao voltar para seu país, não foi direto ao encontro da família, afinal havia sido um preso político. Começou passando por exame de corpo de delito e depois longas horas de interrogatório, ou conversa, não sei bem como isso se chama, com os militares norte-americanos. No dia em que Mr. Fogel tornou-se pai, ficou reluzente de alegria e passou trotando pelos corredores da escola oferecendo charutos (até mesmo aos alunos e em seguida retirando-os pois não podia fazer isso), anunciando o nascimento do primeiro filho, acho que era o ano de 1999. Ele sabia nos remover daquela zona de conforto em que vivíamos como jovens filhos de expatriados no Sudeste Asiático, a maior parte de nós ocidentais. Suas aulas eram sempre uma provocação. Na época, ele já sofria de dores crônicas nas costas e havia passado por algumas cirurgias, durante as aulas não deixava de corrigir a postura dos alunos: “Agora vocês são jovens, quero ver quando chegarem na minha idade, aí sim vão ver o que é bom pra tosse. Sentem direito”. Essa idade que ele tinha então era provavelmente menor do que a que tenho hoje.
Adoro uma sala de aula. Sempre gostei. Sempre amei acordar cedo para ir à escola. Uma mistura de ansiedade de encontrar os amigos, socializar e o desejo de avançar no mundo das ideias e das palavras. Quando não usava uniforme, quando morávamos no Brasil e na Itália, eu preparava o figurino na noite anterior. Depois, por muitos anos, usei uniforme, em Kuala Lumpur, mas sempre me esforçava para encontrar formas de vestir a mesma roupa de um jeito diferente. Sou professora há vinte anos, desde que me formei na graduação. Já dei aulas de italiano, português, literatura, tradução, mas jamais pensei que daria aula de islandês. Como poderia dar aula de língua que ainda sofro imensamente para falar e ler? Contudo falo, leio, escuto e escrevo. Os islandeses sentem enormes ciúmes da sua língua e sempre apostam que os estrangeiros não irão adquirir fluência. Às vezes, aprender uma língua nada mais é do que um esforço nutrido pelo ódio e pelo desejo de querer destruir esse mito. Jamais padeci de síndrome de impostora, tudo que fiz na vida foi sempre com um esforço imenso e atravessando enormes dificuldades, sempre senti que havia algo íntegro nas minhas conquistas. Já com o islandês, isso me parecia absurdo. Então resolvi pegar um Lacan pra mim: “o amor é dar aquilo que não se tem a quem não o deseja”, e pensei que talvez essa chave pudesse abrir um caminho de ensino. Hoje, termino o curso de seis semanas que dei para alunos principiantes. O curso foi ministrado em espanhol, a maior parte dos alunos são refugiados da Venezuela, e pude navegar pelos mares que conheço, em especial a gramática, à qual dediquei um bom tempo de estudo na universidade aqui. Acho que a experiência foi tão positiva porque o que pulsa é a vida entre as regras gramaticais e as tábuas de declinação. Por mais distinta que seja a experiência de imigração, há sempre algum denominador comum. Uma tentativa de adaptação, uma saudade incurável, uma idealização com o novo país e talvez na sequência uma desilusão e um ressentimento. O meu talvez seja o desejo frustrado de ter tido uma amizade íntima com uma pessoa islandesa. Amizade de verdade. Poder sentir-se vulnerável, imperfeito e chateado diante do outro e acolhê-lo da mesma maneira. Muitas vezes, sinto que minha intimidade com esse povo aconteceu de forma imaginária através da literatura e da poesia. Como um quadro de Felipe Baeza, observo-me de vez em quando essa dançarina em pose, consumida por uma lava que se alastra da pelve até os fios dos cabelos. Uma pessoa incontida. É que meus desejos de intimidade talvez sejam colhidos por outros seres como eu, imigrantes, cada um em sua escala de relações desiguais que a vida aqui nos impõe. Nossa falta parece menos oculta e mais delineada. Temos as mesmas raízes aéreas dos quadros de Baeza, há momentos em que elas se retiram do solo – ainda mais um solo vulcânico e poroso como esse em que é difícil fincá-las – e se fazem pernas centopéicas, caminham por aí em busca de outros solos ou de outras raízes com as quais se enredar. Assim como Álfgrímur, o narrador do romance de Laxness, também sigo em direção ao meu desejo. Dessa vez imbuída de uma responsabilidade muito maior do que nos deslocamentos passados, vou de mãos dadas com os frutos mais belos que a Islândia me deu.


Um poema
A UNS AMIGOS ALÉM DE UMA FRONTEIRA I Escrevi tão pouco a vocês. Porém, o que não pude escrever inflou e continuou inflando como um antigo zepelim e finalmente partiu deslizando no céu noturno. II Agora a carta está com o censor. Ele acende a luminária. Minhas palavras voam no clarão como macacos numa jaula se agitam, se aquietam, e mostram os dentes! III Leiam nas entrelinhas. Vamos nos ver em duzentos anos quando os microfones nas paredes do hotel forem esquecidos e finalmente puderem dormir, tornar-se ortoconos. (traduzido do sueco por Luciano Dutra) [TILL VÄNNER BAKOM EN GRÄNS] I Jag skrev så kargt till er. Men det jag inte fick skriva svällde och svällde som ett gammaldags luftskepp och gled bort till sist genom natthimlen. II Nu är brevet hos censorn. Han tänder sin lampa. I skenet flyger mina ord upp som apor på ett galler ruskar till, blir still, och visar tänderna! III Läs mellan raderna. Vi ska träffas om 200 år då mikrofonerna i hotellets väggar är glömda och äntligen får sova, bli ortoceratiter. (Tomas Tranströmer)
Uma música
Uma leitura
A coluna de Djaimilia Pereira de Almeida na 451
Que lindo texto. Admiro profundamente sua habilidade com as diferentes línguas, a do seu marido também. Ensinar línguas e traduzir poesia é muito especial, é apresentar novos mundos para as pessoas.
Que lindo! Você é muito especial e escreve muito! Saudades, mas feliz que vamos nos reencontrar ao vivo e a cores! Beijos e até já