DO DESEJO
paletas mexicanas, kintsugi e o último livro da Schweblin: um balanço de perdas e ganhos
I.
“Não, eu não quero esse picolé”, a criança se debatendo aos prantos, lágrimas sinceras, faltavam não mais do que cinco minutos para chegarmos à casa da avó. “Mas é o mesmo picolé, meu amor, ele só quebrou, toma aqui da minha mão”, tentei, ainda calma, inutilmente, “não não não não, eu não quero, quebrou mamãe, quebrou, quebrou”, seguiu embebido num sentimento real de perda ou maculação do objeto desejado, uma paleta mexicana de morango com recheio mole de sorvete ao leite. Mas já não tinha passado essa onda de paleta mexicana, como é que encontramos esse revival na quitanda do Seu Tomate em Bonfim Paulista? Minha mão melada e congelada pelos restos de picolé que se desintegravam na palma esquerda, a mão direita tentando acariciar sua fronte para acalmá-lo surtia o efeito inverso, intensificava as lágrimas, agora aos berros sacudia a cabeça de um lado ao outro. “Quero outro picolé mamãe, quero um picolé inteiro mamãe, inteiro, por favor, um picolé inteiro, tem em casa?” O problema talvez seja justamente a ruptura da paleta mexicana em duas derradeiras partes, já no finalzinho com aquele recheio mole branco grudando em tudo, inclusive na roupa dele e em meus cabelos. “Sim meu amor, em casa tem outro picolé, um picolé inteiro”, nisso a avó solta uma gargalhada gostosa enquanto dirige e eu tento segurar a minha, porque é cômico e também não é, a dor é real, perder essa paleta justo no final, perder o gosto daquela última mordida.

“Quero agora mamãe”. “Eu sei meu amor, já estamos chegando, você não quer lamber esse aqui, é o mesmo sorvete?” “Não, mamãe, esse tá quebrado, eu quero um inteiro mamãe”, segue chorando e eu respondo “Tá bom meu amor, então a mamãe vai jogar esse pela janela porque está derretendo e sujando tudo, tá bom?” “Não, mamãe! Não, mamãe!” o choro agora vai tomando uma desproporção porque o não é um grito. “Guarda, mamãe, você pode guardar na minha mochila, mamãe?” sorte que a mochila ficara em casa, pois inicialmente só estávamos pegando uma carona até o parquinho, mas ele decidiu que queria passear com a vovó e cantar ABBA no carro e assim fomos parar na quitanda Seu Tomate em Bonfim Paulista. Alguns segundos antes do picolé quebrar (já estava quase acabando, de toda forma), passamos diante de um quadro estranhíssimo dentro de uma loja, parecia algo antigo, ilustrava uma mamãe-noela um pouco sensual alimentando um pinguim com peixes, segurava uma cesta cheia de peixes, consegui bater uma foto, perplexa com essa imagem natalina fora de época, numa terra de calor escaldante. Se acreditasse em sinais, diria que a mamãe-noela estava no fundo avisando que algo estava por ruir.
Mesmo em desalento, afundado nas lágrimas, mesmo ferido pela perda da integridade da paleta, mesmo com ódio, ele continuava educado pedindo para guardar os restos de sorvete na mochila, por favor. Segurei os restos da paleta em minha palma esquerda pelos restantes cinco minutos de carro, detendo a risada e sentindo uma ternura imensa por seu desejo em guardar o que ele não queria mais comer – pois estava quebrado – mas também não queria descartar pela janela como algo sem valor. Quantas vezes não sentimos a mesma dor e frustração ao observar que algo que amamos se quebra, se consome, derrete diante dos nossos olhos? É a mesma coisa, mas já não é, está quebrada, derretida, cindida em duas partes e nem tudo é possível de se remendar usando a arte japonesa kintsugi. Às vezes as coisas se quebram e sobram mesmo só os palitos vazios e melados. Não é sempre que me sinto coberta de paciência diante das frustrações do meu filho, não é fácil contemporizar, mas há momentos em que enxergo nele toda a humanidade do mundo. Aquele revival de paleta mexicana no lugar de todas as dores e frustrações das coisas findas, lascas de desejos quebrantáveis diante dos nossos olhos e hoje é uma paleta mexicana e amanhã será outro objeto, depois outro. Nunca paramos de perder – diante dos nossos olhos – as coisas que amamos ou que simplesmente desejamos, salivantes, as papilas ouriçadas, elas ruem. Então, como não levar a sério esse choro? Como minimizar uma dor que está fadada a se repetir tantas outras vezes? Tento acolher como se estivesse ajudando a colocar uma forminha ao redor da perda, para que ela não fique sem contorno e quando houver outra pontada, outra ruptura, outra dor, ele se lembre da minha mão melada segurando a ex-paleta mexicana de morango e leite entre meus dedos, esperando chegar no lugar certo para descartá-la. “Não pode jogar pela janela, mamãe, tem que jogar no lixo”. Ouvir do filho aquilo que a gente ensina e perceber que não podemos mais cometer certas contravenções. Mas o choro não terminou por aí, não terminou porque houve um descompasso entre minha tolerância em suportar a mão melada e congelada e o desejo dele de se despedir do que havia sobrado daquela paleta, ou seja, o palito.
Assim que a avó estacionou na garagem, pedi para que soltasse a fivela do cinto de segurança e corri para o jardim, subi as escadas e percorri o corredor até o fundo da casa, joguei os restos na lixeira de descartes orgânicos e enxaguei minhas mãos no tanque, ao lado do varal. Voltei para o jardim para encontrá-lo contorcido, ainda chorando, arrancando pedaços de grama com as mãos, os pequenos fiapos verdes agora colados ao redor da boca melada, do nariz, embaixo dos olhos ainda mais esverdeados de tantas lágrimas: o choro seguia e eu já não conseguia entender o porquê. Sentei ao lado dele e tentei acalmá-lo mais uma vez, por fim entendo: “Eu quero ver mamãe, quero ver onde foi, onde foi mamãe?”, onde foi parar o resto – a essa altura liquefeito – do sorvete e do palito. “Tudo bem, mas antes vamos lavar essa mão e essa boca melada, cheia de grama”. Levantei-o apoiando suas pernas sobre o tanque, ele mesmo lavou as mãos e enxaguou a boca, coloquei-o de volta no chão e fomos juntos até a lixeira. Abri e apontei: “Olha lá, viu?”, “Vi”, “Lá no fundo né, ela foi parar lá, tudo bem assim?”, “Tudo, mamãe”. O choro parou e ele correu para dentro de casa, tirou os tênis desse que acendem pequenas luminosidades nas solas, e voltou a brincar.
II.
Todo momento em que posso estar sozinha, quero ler: veja bem, sou dessas que sai de casa carregando livros por aí, ou mesmo carregando-os de um cômodo ao outro, ando esperando que algo aconteça e que os astros se alinhem e que tudo fique propício para que eu possa devorar umas poucas páginas em paz. Confesso que saio mais cedo de casa quando tenho marcada uma reunião em algum café, para que possa simplesmente ler uns vinte minutos em paz, antes que a pessoa chegue. É um prazer bem mastrubatório, talvez. Tem até um tom juvenil de fazer as coisas às escondidas. Tenho a sensação de que assim que estiver em paz com um livro nas mãos (esse objeto carregado de libido), alguém vai aparecer me cobrando no mínimo um pouco de atenção, ou até mesmo que eu faça alguma tarefa prática. Talvez o prazer venha carregado de um sentimento de contravenção, o proibido, parece que dentro de mim há uma pequena e severa contadora que mantém em dia sua caderneta de entregas e afazeres. Ela vive me cobrando. Será que revisou um número adequado de laudas da tradução para merecer essa leitura por puro prazer? Tudo bem, já entregou aquele artigo, mas e o outro, não vai terminar? Tá bom, estenderam o prazo de entrega, mas não vai querer acumular isso com as traduções e sua residência literária na Galícia além da preparação do curso que dará na USP, não é? Acha mesmo que está merecendo ler essas páginas?
Escrever também tangencia esse lugar da culpa, do proibido, para mim, ainda mais quando se trata dessa cartinha aqui sem muito valor (não é uma obra, nem parte dela – também não é algo que faço como recurso de marketing). Vivemos nessa cultura da entrega, até essa mera cartinha não deixa de ser um produto, uma entrega não anímica (embora às vezes o seja ao escrevê-la), mas a criação de algo a ser mostrado e veiculado nas famigeradas redes. Enquanto escrevo isso ouço a voz do Andri em minha cabeça: olha mamãe, olha, olha aqui. Estaria eu também implorando olhem aqui o que estou escrevendo essa semana. Sobre essa obrigação de ser vista e veicular produtos que instiguem curiosidade e nos mantenham na superfície das coisas (no sentido de sermos vistos, ficar com a cabeça de fora da água, um pouco como se diz em italiano a galla), recomendo a leitura da última edição da newsletter da excelente Paula Jacob.
A leitura por puro gozo, aquela leitura que não vai me ajudar a preparar o curso de pós, nem a terminar o artigo, nem é o livro que estou traduzindo, aquela leitura que é só pelo prazer de me desligar da minha realidade concreta e abrir uma portinha de pensamentos obscuros… e aí me entregar nos seus braços, ah esse sim tem se tornado um ato de contravenção e resistência. Destes que se faz a sós. Nessa semana que passamos aqui no interior, na casa da minha mãe, consegui arriscar a leitura de alguns poemas do poeta peruano Yván Yauri, numa belíssima edição bilíngue da editora Ugly Ducking Press que pude visitar e conhecer ao vivo quando estive em Nova York num festival com minha querida amiga escritora e poeta Ana Rüsche nos idos de 2015-2016, retomei também a edição da minha mãe de O Desejo de Hilda Hilst, daquela série da Editora Globo, algo que havia lido há pouco mas na versão digital, o livro-objeto é sempre mais carregado desse componente eletrizante de tesão. O grande reencontro, porém, foi mesmo com a autora argentina Samanta Schweblin, traduzida divinamente por Livia Deorsola em sua última coleção de contos publicada pela Fósforo, O bom mal. Indico também a entrevista de Rodrigo Casarin da Página Cinco, com a autora. Lembro-me que, durante o puerpério, reli Distância de resgate e até assisti ao filme baseado no romance que na época estava passando na Netflix. Eu com um bebê recém-nascido, muitas horas sozinha em casa, totalmente feliz (eufórica), embora exausta e absorvida por esse amor-furacão, precisava dar também vazão a pensamentos tenebrosos e encontrava essa saída na leitura. Até o medo precisava ser canalizado. Mesmo antes de engravidar, lembro que descobri o livro Pájaros en la boca e passei não só a ler como acompanhar qualquer podcast ou entrevista com a autora. Nesses dias, o livro da Samanta Schweblin me devolveu esse espanto, foi tão intensa a leitura do primeiro conto que como acometida por excesso de desejo (e um pouco mais de tempo livre), quis me jogar logo no conto seguinte, mas enquanto lia percebia que ainda não estava despida da vertigem do conto anterior. Ele precisava decantar em mim, até eu estar pronta para receber outro golpe, outro corte à mesma altura. Bom, não vou dar spoilers por aqui, mas sugiro que leiam esse livro recém lançado e procurem os outros, todos publicados pela Fósforo aqui no Brasil.
A leitura de um texto que foge às obviedades, ou pela forma em que é narrado ou pela própria trama (aliás, as duas coisas são indissociáveis, né) , é um texto que vai buscar em algum recôndito de nós o estranho-familiar que nos habita. A vida cotidiana tão controlada para darmos conta dos cuidados com quem é de se cuidar (filho), com o trabalho, com tudo aquilo que nos sustenta tanto financeiramente como emocionalmente, pede para encaixarmos esses pensamentos num ambiente mais controlado. Claro, há sempre o inconsciente por aí nos pregando alguma peça, mas sinto que se tornam cada vez mais raros os momentos em que posso me dar ao luxo de sentir esse prazer. Na leitura ou mesmo no cinema. Assistir a um filme em casa não é a mesma experiência da telona. Quando enfim chega esse momento, há uma tentativa de prolongar o prazer, tentar fazer com que dure um pouco mais, um pouco mais, adiar esse gozo do término (de um conto). Depois ele chega e vem um misto de vazio com perplexidade, a história, sua trama e seus detalhes, seu desfecho que embaralha sua metade fazendo com que não só a narrativa permaneça viva em mim, como esse artifício, essa capacidade da autora de me conduzir até esse ponto para depois me largar assim, ainda tomada por sua história. A leitura termina e o prazer que será encontrado em outro texto não será o mesmo. Certas chamas terminam e não é possível reativá-las, ainda que o ambiente continue aquecido pelo calor do passado.
UM POEMA
[de FRAGMENTOS – POEMAS PÓSTUMOS]
Nós, os eternos fugitivos,
reconhecemos uns aos outros
seja nas nossas afobadas mãos
ou no medo estampado no olhar.Vemos as infrações do coração
feito uma sombra sobre a testa
e sentimos cada palavra do próximo
como se fosse uma agulha afiada.(traduzido do dinamarquês por Luciano Dutra)
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[fra FRAGMENTER – EFTERLADTE DIGTE]
Vi som altid flygter
kan kende hinanden
på vore hænders hastighed
og frygten i vort blik.Vi ser vort hjertes brøde
som en skygge over panden
og føler alle næstens ord
som skarpe nålestik.(Tove Ditlevsen)






Terminei a leitura refletindo ainda sobre as metades de picolés que ainda melam minha mão. Obrigada por esse texto lindo lindo.
Tinha escrito um longo comentário que o substack apagou. Me senti como andri, rs.
Mas dizia como me reconheço tanto em tudo que trouxe. Nas crianças e seus ritos, como o capitalismo arranca da gente essas etapas e ficamos sem poder abrir o berreiro por não finalizar, não frustrar, não despedir.
De que também chego antes, para ler ou para ficar em silêncio, ouvindo a cidade nesse entretempo da cria que chama ininterrupta e o próximo encontro.
E que estou numa ressacona por causa da "Apanhadora de Pássaros", que me tomou desprevenida e por inteiro como há tempos um livro não fazia. Hoje fiquei lá na ansiedade de ter horário pra sair de casa e não conseguir escolher um livro por sentir q nenhum me causaria algo próximo ao que senti ali. rsrsrs mas improvisei.
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